sábado, 5 de novembro de 2011

O Destino, o Efeito Édipo e a Inflação


"Édipo, o teu destino,
destino de amargura,
não me deixa dizer que haja
felicidade para a humana criatura."
(Édipo Rei, Sófocles)

Queridos Alunos,


outro dia, quando falávamos sobre a retórica (?), não sei mais por que cargas d'água surgiu o assunto do "Efeito Édipo". Tampouco lembro se foi na turma da noite ou na da manhã, só sei que o papo pintou apenas em uma ocasião. Como estou fazendo um esforço danado para me tornar uma pessoa justa, para fazer justiça com os demais, resolvi contar para todo mundo do que se trata.

Então vamos lá: "Efeito Édipo" foi um termo cunhado por Popper na década de 1940 para se referir ao fenômeno das "profecias auto-realizáveis", que supostamente ocorreriam no âmbito das ciências sociais, mas não no das ciências naturais. Como o próprio nome já antecipa, a história toda começa com Édipo.

Édipo Rei, para aqueles que já não se lembram, é uma peça de teatro que compõe, junto com Édipo em Colono e Antígona uma das mais conhecidas trilogias de todos os tempos: a trilogia de Sófocles. E esse livro é considerado a quintessência da tragédia grega. Sabem o que é uma tragédia grega?  É uma tragédia elevada à enésima potência: uma desgraceira total e absoluta, começando no começo, continuando no meio e terminando no fim. Desgraça, desgraça, desgraça!

Contarei apenas algumas partes da história aqui, que são aquelas mais relevantes para o nosso propósito, que é chegar no negócio da inflação. Então lá vai: a tragédia de Édipo, bem resumida, mas com algumas pitadas de informação extra, às quais só os iniciados tiveram acesso:

Laio, rei de Tebas, tão logo ficou sabendo da gravidez de sua esposa Jocasta, seguiu direto para o Oráculo de Delfos, o mais famoso da época, dedicado ao deus Apolo. (Parênteses explicativo: era muito comum, na Grécia antiga, que, por ocasião de qualquer acontecimento importante, se consultassem os Oráculos. Estes eram templos, onde sacerdotisas virgens, as chamadas "pitonisas", proferiam suas profecias, respondendo às perguntas de reis, generais e também de outras figuras menos proeminentes, claro. E isto porque todos - eu disse todos - os gregos tinham verdadeira fixação por saber o futuro antes que ele acontecesse, na expectativa de mudá-lo, caso ele fosse desagradável. Dizem as más línguas que lá em Delfos as sacerdotisas entravam em transe depois de aspirarem uns gases - provavelmente tóxicos - que vinham do subterrâneo por umas fendas que havia no solo. Aí, já bem doidonas, elas ficariam balbuciando uns negócios sem nexo, que cada um entendia como queria. Mas acho mesmo que essa versão é apenas intriga de gente incrédula ou, pior ainda, mal-humorada... Ah, e outra informação importantíssima, que diz respeito a todo o desenrolar da história. Havia uma inscrição na entrada do Oráculo de Delfos, que dizia: "Conhece-te a ti mesmo". Guardem bem isso).

Retomando o fio da meada, o Oráculo, ao ser indagado sobre o destino do filho ainda não nascido de Laio, repondeu que viria à luz um varão que mataria o próprio pai e desposaria a mãe. Absolutamente aturdido e desesperado, quando do nascimento do filho, Laio decidiu dar fim à criança. Trespassou-lhe os pés com uma lança e mandou que um escravo o dependurasse em alguma árvore do Monte Citeron, ali próximo, para que fosse devorado pelas feras. Assim foi feito (desgraça! Não falei?). Ocorre que um pastor que passava pelo local ouviu o choro do bebê e o socorreu. Aproveitou e já ali mesmo batizou a criança de Édipo que, em grego arcaico, Οἰδίπους ,significa "aquele que tem os pés (πους) inchados (oἰδαo)". A criança foi então levada a Corinto, cidade próxima de Tebas, e criada pelos Reis da cidade, como se filho legítimo fosse.

Lá pelas páginas tantas, depois de muita água passada por debaixo da ponte, e já adulto, Édipo desentendeu-se com um bêbado, que lançou a suspeita de ser ele filho ilegítimo. Como já era de se esperar, a saída encontrada por Édipo foi buscar a resposta no Oráculo de Delfos, cuja previsão manteve-se: "Matarás teu pai e casarás com tua mãe!". Como não sabia a verdade sobre sua origem (ou "desconhecia-se a si mesmo"), Édipo entendeu tudo errado, pensando tratar-se de seus pais adotivos e resolveu nunca mais retornar a Corinto, a fim de evitar a desdita. Na fuga, em viagem, desentendeu-se seriamente com um outro viajante numa disputa por passagem e terminou por matá-lo. Era seu pai, Laio.

Outras águas rolam e ele finalmente chega a Tebas. Naquela altura, a cidade encontrava-se acossada pela Esfinge, um monstro mitológico que tinha corpo de leão, asas de águia e cabeça de mulher. Ninguém entrava nem saía da cidade, sem que fosse ameaçadoramente interpelado pela Esfinge, que dizia aos passantes: "Decifra-me ou devoro-te!" e propunha um enigma. Aqueles que não conseguiam responder (e foram todos, até a chegada de Édipo) eram devorados. A Édipo, ela perguntou: “Qual é o ser que tem quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia e três à noite, sendo que, ao contrário do que acontece aos outros seres existentes, é tão menos rápido ao caminhar quanto mais pés possui?” A resposta veio de imediato: "é o homem, que em sua infância anda de quatro, na maturidade anda com duas pernas, e na sua velhice anda com o auxilio de uma bengala." Ao ver-se derrotada, a Esfinge jogou-se de um precipício, morrendo instantaneamente. Outra versão dá conta de que ela teria se auto-devorado, mas confesso que mesmo nos meus delírios mais delirantes não consigo imaginar como tal coisa poderia se dar... (Outra nota explicativa para uma questão que não está explicadinha no livro: todo mundo pensa que a Esfinge propunha sempre o mesmo enigma para todo passante, mas não era nada disso. E esse detalhe importantíssimo eu só vim a descobrir em Frankfurt (que diacho de segredo mais secreto esse, hein?). Ela perguntava sempre alguma coisa que estava profundamente relacionada à vida de cada pessoa. Édipo, como sabemos, sofreu o infortúnio de ter os pés muito machucados logo após seu nascimento. Muito provavelmente ele teve problemas com os pés pelo resto da vida. Muito provavelmente ele claudicava e precisou pensar bem mais sobre os problemas de locomoção que enfrentaria na velhice do que aqueles que não tinham nenhuma deformação nos membros inferiores. Sob este aspecto, Édipo seguiu a indicação da inscrição da entrada do Oráculo: "Conhece-te a ti mesmo". E foi por isso que ele conseguiu derrotar a Esfinge).

Como prêmio, Édipo foi coroado Rei e casou-se com a Rainha Jocasta, sua mãe. Tiveram quatro filhos e muitos anos mais tarde, quando a verdade finalmente veio à tona (também por intermédio adivinhem de quem! Sim, do Oráculo de Delfos!), Jocasta se suicida e Édipo vaza os próprios olhos, errando como mendigo cego pelo resto de seus dias (esta parte é contada na peça seguinte, Édipo em Colono). E a desgraceira não termina por aí: ela atravessa a geração e vai seguir no destino de Antígona, que é uma das filhas dele, no terceiro e último livro da trilogia.

A moral da história: ao tentar fugir do seu destino, tudo que o ser humano consegue é colocar em movimento uma cadeia de acontecimentos que, por caminhos obscuros e tortuosos, acabará por jogá-lo de volta nos braços dele - seu destino inexorável! E isso vale para todo mundo: valeu para o Laio e valeu para o Édipo.

Pois muito bem, agora vamos ao final da conversa, que também interessa. Falei para vocês que outro dia mesmo estive em São Paulo, não foi? Mas o que não falei foi que lá desfrutei da deliciosa companhia de alguns sábios e sábias - filósof@s e não filósof@s. E exatamente aqui vocês podem encontrar um artigo excelente de um deles, meu ex-boss e também querido amigo Marcos Barbosa de Oliveira, da USP, que trata justamente do Efeito Édipo (ou prognoplasia). Como, além de físico e filósofo da ciência, ele ainda consegue mandar muito bem em economia, lá na página 35 ele mandou essa:

As prognoplasias positivas costumam ser chamadas de profecias auto-realizáveis (self-fulfilling prophecies). Como exemplo, pode-se citar o caso da inflação: a divulgação de um prognóstico de que a inflação vai subir pode provocar uma reação preventiva nos agentes econômicos formadores de preços (“se a inflação vai subir, é melhor que eu me defenda aumentando os preços de minhas mercadorias”) que tende a fazer que a inflação de fato se eleve. O segundo tipo, obviamente, é o da prognoplasia negativa, correspondente às chamadas profecias auto-refutáveis, ou suicidas (Nagel, 1961, p.468) – aquelas cuja divulgação tende a fazer que o evento previsto não ocorra. Recorrendo novamente ao domínio da economia, um exemplo é o de uma previsão de que o preço de um determinado produto vai se manter baixo durante certo período de tempo, e depois aumentar. Essa informação pode estimular um aumento imediato da procura pelo produto, do qual resulta uma elevação de seu preço antes do tempo previsto, desmentindo assim a previsão.

Relendo este artigo, lembrando da tragédia do Édipo e juntando tudo com outras duas notícias que havia lido bem recentemente sobre a inflação no Brasil, fiquei sem saber direito o que pensar.

As notícias foram as seguintes:

1. percepção do consumidor em relação à inflação piora em outubro, da uol-notícias de economia de 28/10/2011. Lógico, né? A minha também piorou horrores. Eu vou ao supermercado e pago contas regularmente e estou vendo que os preços estão subindo muito mais rápido do que o meu salário... e

2. mercado reduz projeção para inflação em 2011 e 2012, da veja-notícias de economia de (pasmem!!!) 24/10/2011. Na hora não entendi nada! Como as duas coisas se coadunam?

Depois pensei melhor e achei que tinha entendido. Vamos ver. Pensei assim: "claro que esses caras conhecem a história de Édipo, e também já leram Popper, estando carecas de saber da suposta existência do Efeito Édipo. Então, o que eles querem com este anúncio? Devem estar querendo alterar nossa atual percepção de futuro, fazendo-nos crer que ele é mais cor de rosa do que nós estamos achando que será."

E agora, José? O que faremos? Fugimos do futuro, tal como nós acreditamos que ele ocorrerá ou corremos ao seu encontro, tal como eles estão querendo nos fazer acreditar que será? Difícil isso... Anyway, não importa muito o que faremos ou deixaremos de fazer. Se os gregos antigos estiverem certos, no final das contas o destino vem atrás e pega nóis de qualquer jeito, né?

Até mais,
Brena.

P. S. Sei que é ocioso dizer isso, mas vou dizer do mesmo jeito: a peça Édipo Rei é absolutamente divina, e faz pensar demais sobre o papel do destino na vida das humanas criaturas. Não deixem de ler.

sábado, 22 de outubro de 2011

Experiência Estética



Caríssimos Alunos,

estou neste exato momento em Sampa, e eu a-do-ro Sampa!!! Esta cidade é simplesmente demais. Ela tem um não sei quê que me encanta, me encanta e me encanta. Deve ser essa confusão de tantas gentes diferentes junto com essas tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, misturadas com todo esse asfalto e concreto armado. E é por isso que, se o Caetano é o baiano mais paulistano que há na face da Terra, então agorinha mesmo estou me outorgando o título de a carioca de coração mais paulistano que essa Avenida Paulista já teve notícia. E não se discute mais isso, ok?

Como hoje é sábado, vamos falar sobre um negócio diferente do usual. Muito diferente mesmo, chegando a beirar o sobrenatural. Falaremos sobre as experiências estéticas. Acabo de voltar do MASP, aquele "palácio de ferro, vidro e concreto, quase solto no ar", segundo li em algum lugar. E é a mais pura verdade: aquele prédio, por si só, já é uma experiência estética, arquitetônica, engenharial e sobrenatural. Se não lembram dele, deem uma olhadinha logo aqui abaixo e me digam se é ou não é uma coisa linda-de-morrer...




E tudo isso sem mencionar o que tem dentro dele... O resultado foi que voltei de lá muito a fim de falar sobre estes assuntos. Mas vamos por partes, porque o Tico e o Teco estão tão em polvorosa com todas as coisas que andaram vendo e pensando, que se a gente não organizar esse negócio aqui bem direitinho, vocês vão acabar é não entendendo coisa alguma...

O título da postagem é "experiência estética". A estética, como vocês sabem, é uma das áreas de estudo da filosofia. Mas só para recordar, a filosofia divide-se em quatro grandes domínios, que são:

1. a metafísica,
2. a teoria do conhecimento,
3. a ética e
4. a estética

Cada um deles ocupa-se com algumas questões fundamentais, a saber:

1. a metafísica procura responder à questão: "quem somos nós?", bem como várias outras questões correlacionadas, como: "de onde viemos?", "para onde vamos?", "existe uma alma humana imortal?", "existe Deus?", and so on... Para estas perguntas não há respostas que possam ser testadas empiricamente. Na prática, isto significa que nunca saberemos se a alma humana é imortal ou não. Pelo menos enquanto estivermos vivos. Foi por este motivo que os Positivistas Lógicos fizeram questão de deixar bastante claro que a metafísica não poderia fazer parte do escopo da investigação científica.
2. a teoria do conhecimento, ou epistemologia, por sua vez, busca respostas para as questões: "o que é possível conhecer?", "o que é a realidade em si mesma?", "o cérebro humano pode reivindicar um acesso privilegiado a ela?". Desde o advento da revolução científica, como vimos, este tipo de perguntas foi canalizado para a investigação do estatuto do conhecimento científico, especificamente,e é justamente isto que estudamos na nossa disciplinazinha de metodologia. Não é assim?
3. a ética investiga a questão "o que é justo?" ou, dito de outro modo: "como devemos proceder?", "o que é certo e o que é errado de se fazer?" Como estas questões estão relacionadas a aspectos pragmáticos da vida humana, seja individualmente, seja em sociedade, em alguns lugares este tipo de investigação recebe a denominação de "filosofia prática" (como na Alemanha, por exemplo: praktishe Philosophie). Como o agir humano em sociedade em geral envolve desdobramentos políticos, em outros lugares este ramo de investigação também é chamado de "filosofia política", como é o caso do Brasil. E foi na filosofia política que se originou muito do conhecimento que mais tarde viria a formar a área científica denominada ciência política.
4. Por fim, a estética preocupa-se com a investigação sobre"o que é o belo?", "o que é a arte?", "qual o sentido das obras de arte para a humanidade?" e, não menos importante, "o que é uma experiência estética?".

E é sobre isso que trataremos a partir de agora. Esta pequena introdução foi só para que vocês localizassem, no mapa do conhecimento que existe dentro da cabeça de cada um, em qual cidade nós estamos adentrando nesse momento, ok?

Pois muito bem: a imagem que ilustra a postagem de hoje é a de um quadro que faz parte do acervo permanente do MASP. Trata-se de "Criança Morta", do Cândido Portinari. De acordo com o que aprendi com a minha amiga Sandrinha, que além de amiga ainda acumula a função de minha personal professora de história da arte (vamos combinar que ter isso é chic demais, hein?), o estilo do quadro é o expressionismo. E o expressionismo, para aqueles que ainda não estudaram o método dialético, é a antítese do impressionismo (do Monet, Manet, Renoir e Degas).

Aconteceu uma coisa muito intrigante quando estive em São Paulo pela primeira vez, e já lá se vão uns bons anos. Logo que pude, saí correndo para o museu. Chegando lá, parei na frente desse quadro e fiquei entre impressionada e encafifada. Para além do fato da imagem ser muito impactante mesmo, fui invadida por uma sensação de familiaridade, cuja origem não conseguia identificar. E fiquei com aquilo martelando na cabeça um tempão: se nunca havia estado ali antes, de onde eu conhecia aquela imagem? De onde?

Depois de muito matutar, cheguei às seguintes conclusões:

i) Já tinha ouvido aquele quadro numa música chamada Kianda, "a água de beber é pouca, o delírio do cansaço é muito, a lágrima que cai é tanta, que pode até me afogar..." 

ii) E também já havia lido aquela imagem num trecho do lindo e tristíssimo poema do João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina"E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida)" .

"Ah bom!", disse eu de mim para comigo. Então estava explicado porque o quadro me parecera tão familiar, apesar de eu nunca tê-lo visto antes. Mas aquela ainda não tinha sido uma explicação boa o suficiente. Por isso, ao voltar para o hotel fui investigar mais e descobri que o Cândido Portinari era amigo muito chegado adivinhem de quem! Do Graciliano Ramos, e que ele (Portinari) havia pintado uma série de quadros, entre 1944/45, denominada "Retirantes", em homenagem à obra Vidas Secas. E "Criança Morta" faz parte dessa série e dessa homenagem. "Ah bom!", pensei novamente com os meus batons. Então agora sim: aquele quadro e eu já nos conhecíamos há séculos. Éramos praticamente amigos de infância. Já com tudo bem explicadinho dentro da minha cabeça, a coisa toda fez sentido e finalmente consegui dormir em paz.

Mas a parte sobrenatural vem agora. Prestem bastante atenção, porque eu só vou contar essa história uma única vez. A partir deste momento passo a relatar uma conversa que tive com outra amiga, cujo nome entretanto não revelarei nem sob tortura, pois ela não me autorizou a divulgá-lo publicamente. Falávamos sobre o quadro, e sobre minhas investigações e descobertas acerca dele, do jeitinho que acabei de contar para vocês. Pois ela também tinha uma história relacionada com aquele quadro. Disse-me que, na primeira vez que estivera no MASP, também havia ficado muito impressionada com ele. Era tão brutal o rio de lágrimas jorrando dos olhos daquelas pessoas, que ela teria ficado parada durante muito tempo na frente dele, completamente hipnotizada, sem conseguir desgrudar do chão. Foi quando tudo aconteceu. Passo a reproduzir o que me foi contado da maneira mais fidedigna que consigo. Vou até usar aspas.

Ela me disse: "De repente aconteceu uma coisa estranhíssima. Comecei a me sentir mal: uma moleza nas pernas, um aperto no peito, um nó na garganta... E a boca seca, tão seca. Do nada, passei a sentir uma dificuldade para respirar e um desespero enorme. Aquelas pessoas faméricas não eram mais figuras num quadro, eram a minha família! E aquela dor imensa, indizível, e aquela desesperança e aquele abandono que eles sentiam não eram mais apenas deles, mas também a minha dor, a minha desesperança e o meu abandono. E o mais apavorante: aquele menino morto nos braços do pai, não era filho daquela mãe, mas meu filho! Quando percebi o que estava prestes a acontecer, quando entendi tudo, precisei sair correndo para o banheiro, porque senão eu iria cair em prantos e chorar exatamente o mesmo rio de lágrimas bem ali mesmo, no meio do museu e na frente de todo mundo".

Quando ela acabou de me contar essa história, pensei na hora: "Ô loco, meu! Que onda, hein..." Mas o pior de tudo não contei ainda: é que essa minha amiga é a maior super-caretona da paróquia. Por isso, sou capaz de jurar que ela nem estava sob o efeito de psicotrópicos quando teve essa alucinação...

Bom, então já sabem: se algum dia vocês forem arrebatados por uma obra de arte, ou seja, se sentirem que estão "dentro de um quadro" e não apenas "apreciando um quadro" e começarem a apresentar os mesmos sintomas esquisitos na garganta, no peito e nas pernas que acabei de descrever, não entrem em pânico. Está tudo bem! Respirem fundo e mantenham a calma. É provável que se trate apenas de uma experiência estética. Falou?

Então tá.

Até mais,
Brena.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A Criança, o Pônei e o Cão


Queridos Alunos,

continuo corrigindo provas. Este e outro acontecimento departamental recente me fizeram pensar muito em vocês, em mim, em nós, no passado e no futuro. No nosso e no da Universidade. Sigo, como vocês podem perceber, contemplativa e ensimesmada (ou seria emimesmada?). Será isso o que eles chamam de midlife crisis?

De todo modo, ontem, ao pensar nisso tudo, me lembrei demais de um episódio ancestral. (NOTA de 13/10/2011: Estava tão atarantada quando postei isso, que esqueci de dizer que se tratava de uma homenagem ao dia das crianças, claro! Um viva a todas as criancinhas humanas sábias que existem no planeta! E vou até melhorar o título, para que tudo fique muito mais claro...)

Esta doce criaturinha mordendo o beiço inferior e montada num pônei, que ilustra a postagem de hoje, é a Micaela, em todo o esplendor de seus dois aninhos e meio de vida. Um belo dia, ela resolveu uma vez mais testar minha autoridade materna. Estávamos num hotel fazenda e eu tinha um desejo singelo: queria uma foto dela montada no pônei. Só isso. Do pônei fez-se porém um cavalo-de-batalha, e o que se seguiu foi um diálogo de mais ou menos meia hora, que pode ser condensado nos seguintes argumentos, contra-argumentos e novos argumentos (teses, antíteses e sínteses), tudo no melhor estilo dialético:


Eu: "Você vai andar no pônei!"
Ela: "Não vou!"
Eu: "Sobe!"
Ela: "Não subo!"
Eu: "Monta!"
Ela: "Não monto!"
Eu: "Por favor, filhinha..."
Ela: "Não!"
Eu: "Eu estou te pedindo..."
Ela: "Já disse que não!"
Eu: "Então você vai ficar de castigo!"
Ela: "Não vou!"

E o ciclo inteirinho se reiniciava...

Depois de muito pelejar, e quando já estava prestes a ser vencida pelo cansaço, deu-se um daqueles momentos mágicos, em que o próprio tempo parece querer parar, com o único propósito de não perder nenhum mínimo detalhe da cena. Foi por isso que o que veio em seguida aconteceu em slowmotion. Apareceu um cão, do nada. Era um pastor alemão enorme: um bicho bonito, lustroso, bem cuidado mesmo. Com certeza fazia parte da bicharada do hotel e era manso, mas ele era realmente enooooorme... Passou devagarinho (em câmera lenta, lembram?), bem rente a nós quatro: o pônei, o cuidador, ela e eu. Ela, petrificada, em pé, ao pé do pônei, não movia um músculo. Apenas os olhinhos acompanhavam a direção que o cachorro ia tomando. Quando ele finalmente desapareceu numa curva, e só então, o tempo se recuperou, voltando à sua marcha habitual. Foi aí que ela virou-se para mim, muito resoluta, e disse: "Tudo bem, tudo bem: eu subo! Mas no CACHORRO eu não ando não!!!!!!!"

A moral da história? Lá vai: mesmo criancinhas na mais tenra idade já sabem (ou intuem) que tudo, absolutamente tudo na vida, por pior que pareça ser, sempre pode piorar...

Se a tragédia realmente se confirmar, voltaremos a falar neste assunto, ok?

Abs,
Brena.

domingo, 18 de setembro de 2011

Batgirl or what is it like to be a bat?


Queridos Alunos,

este fim de semana estava eu praticando arvorismo com a minha prole atlética, quando de repente, não mais do que de repente, me dei conta que estava observando o mundo de uma perspectiva muito diferente da usual. Da copa das árvores, de uma altura de uns 12 metros, se não exagero, por um momento pensei estar compartilhando a perspectiva dos pássaros, dos bichos-preguiça e dos saguis. No meio do delírio, cheguei mesmo a cogitar a possibilidade de aproveitar a ocasião tão inusitada e experimentar também a visão de mundo dos morcegos. O único porém era que, para isso, eu precisaria dar um jeito de fugir dos monitores, me livrar daquele monte de equipamentos de segurança e me pendurar de cabeça para baixo em algum galho.

Como um pensamentozinho puxa o outro, que puxa outro, e assim indefinidamente, logo em seguida percebi que não era nada daquilo. Mesmo que eu, num momento de - aí sim - completo desvario, resolvesse de fato me dependurar de ponta-cabeça ali, o máximo que conseguiria seria observar uma imagem invertida do mundo e dos píncaros de uma árvore, mas sempre da perspectiva de um ser humano. Esta sábia conclusão veio da lembrança de um texto muito legal que havia lido há vários anos, intitulado What is it like to be a bat? (Como é ser um morcego?) que trata justamente disso: da impossibilidade real de que um ser humano "veja o mundo" segundo a perspectiva dos morcegos (e, por extensão, da perspectiva dos cães, das baleias, das abelhas, dos crocodilos, ou dos marcianos, por exemplo). Este é um texto clássico da filosofia da mente, subárea da filosofia cujas questões possuem muitos pontos de tangência com aquelas da Epistemologia (e também da neurociência, da filosofia da linguagem e da ciência cognitiva). Seu autor é o filósofo norte-americano Thomas Nagel, professor da Universidade de Nova Iorque. Não confundir com o outro Nagel (Ernst, que também vai pintar por aqui logo mais) - do Positivismo Lógico - que foi um dos fundadores do Círculo de Viena.

Muito bem, vamos chegar já já na Epistemologia, mas antes disso preciso falar sobre algumas outras coisas. Já sabemos que a teoria da Evolução é a melhor teoria hoje disponível no mercado para explicar como todos nós, humanos (e também os nossos companheiros terráqueos não humanos), chegamos até aqui, E ela nos diz que novas espécies biológicas - altamente especializadas - se desenvolvem a partir de outras, menos especializadas. Ou seja, a evolução se daria pela preservação das variações aleatórias úteis a seu portador e pela destruição das variações inúteis e/ou nefastas, por meio de um processo de seleção natural. O que nos importa mais diretamente aqui é o fato de que, segundo a teoria, nossos cérebros são fruto de aproximadamente dois milhões e meio de anos (aqui há controvérsias...) de conjecturas e refutações da natureza (no sentido de tentativas de adaptação bem sucedida ao meio), desde o surgimento do gênero Homo, até desembocar na nossa sub-subespécie, os Homo sapiens sapiens sapientíssimos.

Então, agora juntando o lé com o cré: as folhas verdes que vi com esses olhos que a terra há de comer, e os galhos marrons e rugosos que toquei não são a realidade tal como ela realmente é. Pasmem!!! São apenas e tão somente a realidade tal como ela nos aparece, dada a nossa conformação neurocerebral. Esta permite-nos apreender o mundo de uma determinada forma (e não de outra). Isto explica, por exemplo, porque o nosso "mundo real" é o mundo da visão. Enquanto isso, o mundo real dos morcegos, determinado pela conformação neurocerebral deles, é o mundo da escuridão, dos sons (já prestaram atenção no tamanho descomunal das orelhas em comparação ao resto do corpo?), das vocalizações e das ecolocalizações. Já o mundo real dos cães é o do olfato (o homem tem apenas 5 milhões de células olfativas, contra 200 milhões do cão) e da audição. E por aí vão as inúmeras, inacreditáveis e mirabolantes possibilidades de se perceber a realidade... O que quero dizer com isso? Apenas que a nossa realidade tão querida, familiar e acolhedora não passa de uma contingência, de um capricho da natureza. Nada há de necessário no verde das folhas (que, aliás, não existe de verdade, como já deve ter dado para perceber...)

Lá nas páginas 250-251, o Thomas Nagel solta esta pérola:

A nossa própria experiência provê o material básico para a nossa imaginação, cujo alcance é, conseqüentemente, limitado. Não ajuda tentar imaginar que alguém tenha membranas sob os braços que o habilite a voar ao entardecer e ao alvorecer pegando insetos com a boca, que tenha a visão muito precária e perceba o mundo à sua volta por um sistema de sinais de som em alta freqüência refletidos, e que passe o dia pendurado de cabeça para baixo com os pés no teto de um sótão. Até onde eu consiga imaginar isso (e não chego muito longe),  isso apenas me diz como seria para mim comportar-me como um morcego se comporta. Mas não é essa a questão. Eu quero saber como é, para um morcego, ser um morcego. Se eu ainda assim tento imaginar isso, fico restrito aos recursos da minha própria mente, inadequados para a tarefa. Não consigo isso nem mesmo imaginando acréscimos à minha experiência presente, nem imaginando segmentos gradualmente subtraídos dela, nem imaginando uma combinação de acréscimos, subtrações e modificações. Por  “nosso próprio caso” eu não quero significar apenas “meu próprio caso”, mas as idéias mentalistas que nós aplicamos, sem problemas, a nós mesmos e a outros seres humanos. 

O que ele quis dizer com isso? Trocando em miúdos: que apenas morcegos, o Batman, a Batgirl e o Conde Drácula terão a experiência de saber como é ser um morcego. E que, para nós, mulheres e homens humanos mais basiquinhos, essa possibilidade está definitivamente vedada.

Se é assim, a Filosofia da Mente está nos dizendo que a mente humana não tem acesso à visão de mundo dos morcegos, e nem àquela dos cães, dos golfinhos, das maritacas etc., etc., etc. Dando um passo além, poderíamos perguntar: então como ela pode reivindicar um acesso privilegiado ao mundo? Chegamos neste ponto a uma questão de fronteira entre a Filosofia da Mente e a Teoria do Conhecimento / Epistemologia, para além daquela mais imediata do subjetivismo versus objetivismo, que é o problema do realismo versus instrumentalismo. Qual é o objetivo da ciência e, em última instância, das teorias científicas? A resposta seria: descrever, explicar e prever a realidade, segundo o outro Nagel (1961)  (o Ernst desta vez, e não o Thomas). Esta é a tese dos chamados realistas. Mas primeiro é necessário distinguir dois sentidos para o realismo:

1) o sentido ontológico (que diz respeito à existência dos entes no mundo) e
2) o sentido epistemológico (que se refere às possibilidades de conhecimento desses entes)

O realismo ontológico é a tese segundo a qual a realidade material existe independentemente da existência da mente humana (ou de qualquer outra mente). A negação do realismo ontológico é feita pela corrente antagônica conhecida por idealismo, que pode assumir vários matizes, sendo o mais extremo deles o solipsismo.

Já o realismo epistemológico afirma que é possível conhecer racionalmente esta realidade exterior, ou seja, que as teorias científicas se referem (ou devem buscar referir-se) à realidade.



O Amado é um realista de carteirinha, tanto ontológico como epistemológico (and so am I!). Segundo ele: “seria um grave erro concluir que a incerteza de uma teoria – isto é, seu caráter conjetural e hipotético – diminui sua pretensão de descrever a realidade. Toda assertiva a equivale à afirmativa de que a é real.” (Popper, 1997: 144. Itálicos no original).
 
 

Mas como pode ser isso? Essa história de se tentar alcançar a realidade por detrás do "véu das aparências" está ficando cada vez mais complicada... Já vimos que:
i) existem problemas lógicos intransponíveis com a verificação das teorias (ou seja, do ponto de vista lógico, nunca poderemos saber se uma teoria é verdadeira (no sentido de sua correspondência com a realidade),
ii) existem problemas pragmáticos sérios com relação à falsificação cabal e definitiva das teorias (Tese de Duhem-Quine) e agora mais essa:
iii) existe o problema de que o acesso à Realidade (com "R" maiúsculo) é impossível para nós, em decorrência da conformação neurocerebral a que estamos submetidos, que nos permite acesso a uma parcela muito limitada do "mundo real".
 

Como alguém pode ainda pretender chegar perto da realidade com esse barulho todo? Vocês podem pensar que, a essas alturas do campeonato, esta pretensão, apesar de muito romântica, seria simplesmente  impossível de ser realizada. Essa é a visão da corrente epistemológica conhecida como instrumentalismo, para a qual as teorias nada mais são do que meros “instrumentos” ou ferramentas de cálculo e predição. Ou seja, uma arquitetura conceitual cujo objetivo é permitir ao homem intervir sobre a realidade, abrindo mão da tentativa de entendê-la. Existem problemas muito sérios relacionados também a esta perspectiva, assim como a todos os outros "ismos" - pragmatismo, construtivismo, relativismo -, concebidos para tentar solucionar os problemas do conhecimento humano, que brotam da terra feito água.


 
Algum dia falaremos mais sobre tudo isso, mas por ora só vamos inventariar aquilo que já sabemos: a lógica não nos salvará (ver Aula 2); e nem a filosofia da mente e da ciência tampouco (Aula de hoje)... Voltamos à pérola do Nagel (Thomas): "A nossa própria experiência provê o material básico para a nossa imaginação". A salvação está nas escolhas que faremos, e só poderemos fazer estas escolhas baseados em nossas próprias experiências pessoais. Deu para entender alguma coisa??? Se não, podem perguntar...
  
Ah, e antes que eu me esqueça: a bat-gata veio deste site.

Até,
Brena.

Referências:
NAGEL, E. La Estrutura de la CienciaBuenos Aires: Paidos, 1961.            
POPPER, K. O realismo e o objectivo da ciência. Lisboa: D. Quixote, 1997.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Aula 3 - λογική - exercícios



Fiquei devendo exercícios. Aí vão eles. Sugiro fortemente que façam todos...

Apenas trabalho braçal:

I) Usando tabelas de verdade, verifique (agora sem olhar o papelzinho com as propriedades dos conectivos) se as conclusões indicadas abaixo são de fato consequências lógicas das premissas:

(a) { AB;  ¬A} B
(b) { AB; ¬A}╞ ¬B
(c) { ¬ (AB) }╞ ¬¬A
(d) A B╞ AB
(e) ¬→ ¬ B╞ → B

Agora um pouco de trabalho intelectual:

II) Traduzam para a linguagem do CPC os seguintes argumentos. Testem a validade de cada um deles com a construção de tabelas de verdade e digam a qual modo pertencem:

(a) Se o governo permitir que a inflação continue subindo, os sindicatos pressionarão por aumentos de salários. E isso é exatamente o que irá acontecer, tendo em vista que a inflação continuará subindo.

(b) Quanto maior for o número de pessoas pobres num país, maior será a taxa de criminalidade. Pujança econômica tira as pessoas da pobreza. Por isso, para manter a taxa de criminalidade baixa é necessário que haja riqueza econômica.

Fácil, fácil, né? Na prova vai ser um pouco mais complicado...

Amanhã pagarei outra dívida: as propriedades contra-intuitivas da implicação.

Abs,
Brena.