sábado, 5 de novembro de 2011

O Destino, o Efeito Édipo e a Inflação


"Édipo, o teu destino,
destino de amargura,
não me deixa dizer que haja
felicidade para a humana criatura."
(Édipo Rei, Sófocles)

Queridos Alunos,


outro dia, quando falávamos sobre a retórica (?), não sei mais por que cargas d'água surgiu o assunto do "Efeito Édipo". Tampouco lembro se foi na turma da noite ou na da manhã, só sei que o papo pintou apenas em uma ocasião. Como estou fazendo um esforço danado para me tornar uma pessoa justa, para fazer justiça com os demais, resolvi contar para todo mundo do que se trata.

Então vamos lá: "Efeito Édipo" foi um termo cunhado por Popper na década de 1940 para se referir ao fenômeno das "profecias auto-realizáveis", que supostamente ocorreriam no âmbito das ciências sociais, mas não no das ciências naturais. Como o próprio nome já antecipa, a história toda começa com Édipo.

Édipo Rei, para aqueles que já não se lembram, é uma peça de teatro que compõe, junto com Édipo em Colono e Antígona uma das mais conhecidas trilogias de todos os tempos: a trilogia de Sófocles. E esse livro é considerado a quintessência da tragédia grega. Sabem o que é uma tragédia grega?  É uma tragédia elevada à enésima potência: uma desgraceira total e absoluta, começando no começo, continuando no meio e terminando no fim. Desgraça, desgraça, desgraça!

Contarei apenas algumas partes da história aqui, que são aquelas mais relevantes para o nosso propósito, que é chegar no negócio da inflação. Então lá vai: a tragédia de Édipo, bem resumida, mas com algumas pitadas de informação extra, às quais só os iniciados tiveram acesso:

Laio, rei de Tebas, tão logo ficou sabendo da gravidez de sua esposa Jocasta, seguiu direto para o Oráculo de Delfos, o mais famoso da época, dedicado ao deus Apolo. (Parênteses explicativo: era muito comum, na Grécia antiga, que, por ocasião de qualquer acontecimento importante, se consultassem os Oráculos. Estes eram templos, onde sacerdotisas virgens, as chamadas "pitonisas", proferiam suas profecias, respondendo às perguntas de reis, generais e também de outras figuras menos proeminentes, claro. E isto porque todos - eu disse todos - os gregos tinham verdadeira fixação por saber o futuro antes que ele acontecesse, na expectativa de mudá-lo, caso ele fosse desagradável. Dizem as más línguas que lá em Delfos as sacerdotisas entravam em transe depois de aspirarem uns gases - provavelmente tóxicos - que vinham do subterrâneo por umas fendas que havia no solo. Aí, já bem doidonas, elas ficariam balbuciando uns negócios sem nexo, que cada um entendia como queria. Mas acho mesmo que essa versão é apenas intriga de gente incrédula ou, pior ainda, mal-humorada... Ah, e outra informação importantíssima, que diz respeito a todo o desenrolar da história. Havia uma inscrição na entrada do Oráculo de Delfos, que dizia: "Conhece-te a ti mesmo". Guardem bem isso).

Retomando o fio da meada, o Oráculo, ao ser indagado sobre o destino do filho ainda não nascido de Laio, repondeu que viria à luz um varão que mataria o próprio pai e desposaria a mãe. Absolutamente aturdido e desesperado, quando do nascimento do filho, Laio decidiu dar fim à criança. Trespassou-lhe os pés com uma lança e mandou que um escravo o dependurasse em alguma árvore do Monte Citeron, ali próximo, para que fosse devorado pelas feras. Assim foi feito (desgraça! Não falei?). Ocorre que um pastor que passava pelo local ouviu o choro do bebê e o socorreu. Aproveitou e já ali mesmo batizou a criança de Édipo que, em grego arcaico, Οἰδίπους ,significa "aquele que tem os pés (πους) inchados (oἰδαo)". A criança foi então levada a Corinto, cidade próxima de Tebas, e criada pelos Reis da cidade, como se filho legítimo fosse.

Lá pelas páginas tantas, depois de muita água passada por debaixo da ponte, e já adulto, Édipo desentendeu-se com um bêbado, que lançou a suspeita de ser ele filho ilegítimo. Como já era de se esperar, a saída encontrada por Édipo foi buscar a resposta no Oráculo de Delfos, cuja previsão manteve-se: "Matarás teu pai e casarás com tua mãe!". Como não sabia a verdade sobre sua origem (ou "desconhecia-se a si mesmo"), Édipo entendeu tudo errado, pensando tratar-se de seus pais adotivos e resolveu nunca mais retornar a Corinto, a fim de evitar a desdita. Na fuga, em viagem, desentendeu-se seriamente com um outro viajante numa disputa por passagem e terminou por matá-lo. Era seu pai, Laio.

Outras águas rolam e ele finalmente chega a Tebas. Naquela altura, a cidade encontrava-se acossada pela Esfinge, um monstro mitológico que tinha corpo de leão, asas de águia e cabeça de mulher. Ninguém entrava nem saía da cidade, sem que fosse ameaçadoramente interpelado pela Esfinge, que dizia aos passantes: "Decifra-me ou devoro-te!" e propunha um enigma. Aqueles que não conseguiam responder (e foram todos, até a chegada de Édipo) eram devorados. A Édipo, ela perguntou: “Qual é o ser que tem quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia e três à noite, sendo que, ao contrário do que acontece aos outros seres existentes, é tão menos rápido ao caminhar quanto mais pés possui?” A resposta veio de imediato: "é o homem, que em sua infância anda de quatro, na maturidade anda com duas pernas, e na sua velhice anda com o auxilio de uma bengala." Ao ver-se derrotada, a Esfinge jogou-se de um precipício, morrendo instantaneamente. Outra versão dá conta de que ela teria se auto-devorado, mas confesso que mesmo nos meus delírios mais delirantes não consigo imaginar como tal coisa poderia se dar... (Outra nota explicativa para uma questão que não está explicadinha no livro: todo mundo pensa que a Esfinge propunha sempre o mesmo enigma para todo passante, mas não era nada disso. E esse detalhe importantíssimo eu só vim a descobrir em Frankfurt (que diacho de segredo mais secreto esse, hein?). Ela perguntava sempre alguma coisa que estava profundamente relacionada à vida de cada pessoa. Édipo, como sabemos, sofreu o infortúnio de ter os pés muito machucados logo após seu nascimento. Muito provavelmente ele teve problemas com os pés pelo resto da vida. Muito provavelmente ele claudicava e precisou pensar bem mais sobre os problemas de locomoção que enfrentaria na velhice do que aqueles que não tinham nenhuma deformação nos membros inferiores. Sob este aspecto, Édipo seguiu a indicação da inscrição da entrada do Oráculo: "Conhece-te a ti mesmo". E foi por isso que ele conseguiu derrotar a Esfinge).

Como prêmio, Édipo foi coroado Rei e casou-se com a Rainha Jocasta, sua mãe. Tiveram quatro filhos e muitos anos mais tarde, quando a verdade finalmente veio à tona (também por intermédio adivinhem de quem! Sim, do Oráculo de Delfos!), Jocasta se suicida e Édipo vaza os próprios olhos, errando como mendigo cego pelo resto de seus dias (esta parte é contada na peça seguinte, Édipo em Colono). E a desgraceira não termina por aí: ela atravessa a geração e vai seguir no destino de Antígona, que é uma das filhas dele, no terceiro e último livro da trilogia.

A moral da história: ao tentar fugir do seu destino, tudo que o ser humano consegue é colocar em movimento uma cadeia de acontecimentos que, por caminhos obscuros e tortuosos, acabará por jogá-lo de volta nos braços dele - seu destino inexorável! E isso vale para todo mundo: valeu para o Laio e valeu para o Édipo.

Pois muito bem, agora vamos ao final da conversa, que também interessa. Falei para vocês que outro dia mesmo estive em São Paulo, não foi? Mas o que não falei foi que lá desfrutei da deliciosa companhia de alguns sábios e sábias - filósof@s e não filósof@s. E exatamente aqui vocês podem encontrar um artigo excelente de um deles, meu ex-boss e também querido amigo Marcos Barbosa de Oliveira, da USP, que trata justamente do Efeito Édipo (ou prognoplasia). Como, além de físico e filósofo da ciência, ele ainda consegue mandar muito bem em economia, lá na página 35 ele mandou essa:

As prognoplasias positivas costumam ser chamadas de profecias auto-realizáveis (self-fulfilling prophecies). Como exemplo, pode-se citar o caso da inflação: a divulgação de um prognóstico de que a inflação vai subir pode provocar uma reação preventiva nos agentes econômicos formadores de preços (“se a inflação vai subir, é melhor que eu me defenda aumentando os preços de minhas mercadorias”) que tende a fazer que a inflação de fato se eleve. O segundo tipo, obviamente, é o da prognoplasia negativa, correspondente às chamadas profecias auto-refutáveis, ou suicidas (Nagel, 1961, p.468) – aquelas cuja divulgação tende a fazer que o evento previsto não ocorra. Recorrendo novamente ao domínio da economia, um exemplo é o de uma previsão de que o preço de um determinado produto vai se manter baixo durante certo período de tempo, e depois aumentar. Essa informação pode estimular um aumento imediato da procura pelo produto, do qual resulta uma elevação de seu preço antes do tempo previsto, desmentindo assim a previsão.

Relendo este artigo, lembrando da tragédia do Édipo e juntando tudo com outras duas notícias que havia lido bem recentemente sobre a inflação no Brasil, fiquei sem saber direito o que pensar.

As notícias foram as seguintes:

1. percepção do consumidor em relação à inflação piora em outubro, da uol-notícias de economia de 28/10/2011. Lógico, né? A minha também piorou horrores. Eu vou ao supermercado e pago contas regularmente e estou vendo que os preços estão subindo muito mais rápido do que o meu salário... e

2. mercado reduz projeção para inflação em 2011 e 2012, da veja-notícias de economia de (pasmem!!!) 24/10/2011. Na hora não entendi nada! Como as duas coisas se coadunam?

Depois pensei melhor e achei que tinha entendido. Vamos ver. Pensei assim: "claro que esses caras conhecem a história de Édipo, e também já leram Popper, estando carecas de saber da suposta existência do Efeito Édipo. Então, o que eles querem com este anúncio? Devem estar querendo alterar nossa atual percepção de futuro, fazendo-nos crer que ele é mais cor de rosa do que nós estamos achando que será."

E agora, José? O que faremos? Fugimos do futuro, tal como nós acreditamos que ele ocorrerá ou corremos ao seu encontro, tal como eles estão querendo nos fazer acreditar que será? Difícil isso... Anyway, não importa muito o que faremos ou deixaremos de fazer. Se os gregos antigos estiverem certos, no final das contas o destino vem atrás e pega nóis de qualquer jeito, né?

Até mais,
Brena.

P. S. Sei que é ocioso dizer isso, mas vou dizer do mesmo jeito: a peça Édipo Rei é absolutamente divina, e faz pensar demais sobre o papel do destino na vida das humanas criaturas. Não deixem de ler.