Queridos Alunos,
este fim de semana estava eu praticando arvorismo com a minha prole atlética, quando de repente, não mais do que de repente, me dei conta que estava observando o mundo de uma perspectiva muito diferente da usual. Da copa das árvores, de uma altura de uns 12 metros, se não exagero, por um momento pensei estar compartilhando a perspectiva dos pássaros, dos bichos-preguiça e dos saguis. No meio do delírio, cheguei mesmo a cogitar a possibilidade de aproveitar a ocasião tão inusitada e experimentar também a visão de mundo dos morcegos. O único porém era que, para isso, eu precisaria dar um jeito de fugir dos monitores, me livrar daquele monte de equipamentos de segurança e me pendurar de cabeça para baixo em algum galho.
este fim de semana estava eu praticando arvorismo com a minha prole atlética, quando de repente, não mais do que de repente, me dei conta que estava observando o mundo de uma perspectiva muito diferente da usual. Da copa das árvores, de uma altura de uns 12 metros, se não exagero, por um momento pensei estar compartilhando a perspectiva dos pássaros, dos bichos-preguiça e dos saguis. No meio do delírio, cheguei mesmo a cogitar a possibilidade de aproveitar a ocasião tão inusitada e experimentar também a visão de mundo dos morcegos. O único porém era que, para isso, eu precisaria dar um jeito de fugir dos monitores, me livrar daquele monte de equipamentos de segurança e me pendurar de cabeça para baixo em algum galho.
Como um pensamentozinho puxa o outro, que puxa outro, e assim indefinidamente, logo em seguida percebi que não era nada daquilo. Mesmo que eu, num momento de - aí sim - completo desvario, resolvesse de fato me dependurar de ponta-cabeça ali, o máximo que conseguiria seria observar uma imagem invertida do mundo e dos píncaros de uma árvore, mas sempre da perspectiva de um ser humano. Esta sábia conclusão veio da lembrança de um texto muito legal que havia lido há vários anos, intitulado What is it like to be a bat? (Como é ser um morcego?) que trata justamente disso: da impossibilidade real de que um ser humano "veja o mundo" segundo a perspectiva dos morcegos (e, por extensão, da perspectiva dos cães, das baleias, das abelhas, dos crocodilos, ou dos marcianos, por exemplo). Este é um texto clássico da filosofia da mente, subárea da filosofia cujas questões possuem muitos pontos de tangência com aquelas da Epistemologia (e também da neurociência, da filosofia da linguagem e da ciência cognitiva). Seu autor é o filósofo norte-americano Thomas Nagel, professor da Universidade de Nova Iorque. Não confundir com o outro Nagel (Ernst, que também vai pintar por aqui logo mais) - do Positivismo Lógico - que foi um dos fundadores do Círculo de Viena.
Muito bem, vamos chegar já já na Epistemologia, mas antes disso preciso falar sobre algumas outras coisas. Já sabemos que a teoria da Evolução é a melhor teoria hoje disponível no mercado para explicar como todos nós, humanos (e também os nossos companheiros terráqueos não humanos), chegamos até aqui, E ela nos diz que novas espécies biológicas - altamente especializadas - se desenvolvem a partir de outras, menos especializadas. Ou seja, a evolução se daria pela preservação das variações aleatórias úteis a seu portador e pela destruição das variações inúteis e/ou nefastas, por meio de um processo de seleção natural. O que nos importa mais diretamente aqui é o fato de que, segundo a teoria, nossos cérebros são fruto de aproximadamente dois milhões e meio de anos (aqui há controvérsias...) de conjecturas e refutações da natureza (no sentido de tentativas de adaptação bem sucedida ao meio), desde o surgimento do gênero Homo, até desembocar na nossa sub-subespécie, os Homo sapiens sapiens sapientíssimos.
Então, agora juntando o lé com o cré: as folhas verdes que vi com esses olhos que a terra há de comer, e os galhos marrons e rugosos que toquei não são a realidade tal como ela realmente é. Pasmem!!! São apenas e tão somente a realidade tal como ela nos aparece, dada a nossa conformação neurocerebral. Esta permite-nos apreender o mundo de uma determinada forma (e não de outra). Isto explica, por exemplo, porque o nosso "mundo real" é o mundo da visão. Enquanto isso, o mundo real dos morcegos, determinado pela conformação neurocerebral deles, é o mundo da escuridão, dos sons (já prestaram atenção no tamanho descomunal das orelhas em comparação ao resto do corpo?), das vocalizações e das ecolocalizações. Já o mundo real dos cães é o do olfato (o homem tem apenas 5 milhões de células olfativas, contra 200 milhões do cão) e da audição. E por aí vão as inúmeras, inacreditáveis e mirabolantes possibilidades de se perceber a realidade... O que quero dizer com isso? Apenas que a nossa realidade tão querida, familiar e acolhedora não passa de uma contingência, de um capricho da natureza. Nada há de necessário no verde das folhas (que, aliás, não existe de verdade, como já deve ter dado para perceber...)
Lá nas páginas 250-251, o Thomas Nagel solta esta pérola:
A nossa própria experiência provê o material básico para a nossa imaginação, cujo alcance é, conseqüentemente, limitado. Não ajuda tentar imaginar que alguém tenha membranas sob os braços que o habilite a voar ao entardecer e ao alvorecer pegando insetos com a boca, que tenha a visão muito precária e perceba o mundo à sua volta por um sistema de sinais de som em alta freqüência refletidos, e que passe o dia pendurado de cabeça para baixo com os pés no teto de um sótão. Até onde eu consiga imaginar isso (e não chego muito longe), isso apenas me diz como seria para mim comportar-me como um morcego se comporta. Mas não é essa a questão. Eu quero saber como é, para um morcego, ser um morcego. Se eu ainda assim tento imaginar isso, fico restrito aos recursos da minha própria mente, inadequados para a tarefa. Não consigo isso nem mesmo imaginando acréscimos à minha experiência presente, nem imaginando segmentos gradualmente subtraídos dela, nem imaginando uma combinação de acréscimos, subtrações e modificações. Por “nosso próprio caso” eu não quero significar apenas “meu próprio caso”, mas as idéias mentalistas que nós aplicamos, sem problemas, a nós mesmos e a outros seres humanos.
O que ele quis dizer com isso? Trocando em miúdos: que apenas morcegos, o Batman, a Batgirl e o Conde Drácula terão a experiência de saber como é ser um morcego. E que, para nós, mulheres e homens humanos mais basiquinhos, essa possibilidade está definitivamente vedada.
Se é assim, a Filosofia da Mente está nos dizendo que a mente humana não tem acesso à visão de mundo dos morcegos, e nem àquela dos cães, dos golfinhos, das maritacas etc., etc., etc. Dando um passo além, poderíamos perguntar: então como ela pode reivindicar um acesso privilegiado ao mundo? Chegamos neste ponto a uma questão de fronteira entre a Filosofia da Mente e a Teoria do Conhecimento / Epistemologia, para além daquela mais imediata do subjetivismo versus objetivismo, que é o problema do realismo versus instrumentalismo. Qual é o objetivo da ciência e, em última instância, das teorias científicas? A resposta seria: descrever, explicar e prever a realidade, segundo o outro Nagel (1961) (o Ernst desta vez, e não o Thomas). Esta é a tese dos chamados realistas. Mas primeiro é necessário distinguir dois sentidos para o realismo:
1) o sentido ontológico (que diz respeito à existência dos entes no mundo) e
2) o sentido epistemológico (que se refere às possibilidades de conhecimento desses entes)
O realismo ontológico é a tese segundo a qual a realidade material existe independentemente da existência da mente humana (ou de qualquer outra mente). A negação do realismo ontológico é feita pela corrente antagônica conhecida por idealismo, que pode assumir vários matizes, sendo o mais extremo deles o solipsismo.
Já o realismo epistemológico afirma que é possível conhecer racionalmente esta realidade exterior, ou seja, que as teorias científicas se referem (ou devem buscar referir-se) à realidade.
O Amado é um realista de carteirinha, tanto ontológico como epistemológico (and so am I!). Segundo ele: “seria um grave erro concluir que a incerteza de uma teoria – isto é, seu caráter conjetural e hipotético – diminui sua pretensão de descrever a realidade. Toda assertiva a equivale à afirmativa de que a é real.” (Popper, 1997: 144. Itálicos no original).
Mas como pode ser isso? Essa história de se tentar alcançar a realidade por detrás do "véu das aparências" está ficando cada vez mais complicada... Já vimos que:
i) existem problemas lógicos intransponíveis com a verificação das teorias (ou seja, do ponto de vista lógico, nunca poderemos saber se uma teoria é verdadeira (no sentido de sua correspondência com a realidade),
ii) existem problemas pragmáticos sérios com relação à falsificação cabal e definitiva das teorias (Tese de Duhem-Quine) e agora mais essa:
iii) existe o problema de que o acesso à Realidade (com "R" maiúsculo) é impossível para nós, em decorrência da conformação neurocerebral a que estamos submetidos, que nos permite acesso a uma parcela muito limitada do "mundo real".
Como alguém pode ainda pretender chegar perto da realidade com esse barulho todo? Vocês podem pensar que, a essas alturas do campeonato, esta pretensão, apesar de muito romântica, seria simplesmente impossível de ser realizada. Essa é a visão da corrente epistemológica conhecida como instrumentalismo, para a qual as teorias nada mais são do que meros “instrumentos” ou ferramentas de cálculo e predição. Ou seja, uma arquitetura conceitual cujo objetivo é permitir ao homem intervir sobre a realidade, abrindo mão da tentativa de entendê-la. Existem problemas muito sérios relacionados também a esta perspectiva, assim como a todos os outros "ismos" - pragmatismo, construtivismo, relativismo -, concebidos para tentar solucionar os problemas do conhecimento humano, que brotam da terra feito água.
Algum dia falaremos mais sobre tudo isso, mas por ora só vamos inventariar aquilo que já sabemos: a lógica não nos salvará (ver Aula 2); e nem a filosofia da mente e da ciência tampouco (Aula de hoje)... Voltamos à pérola do Nagel (Thomas): "A nossa própria experiência provê o material básico para a nossa imaginação". A salvação está nas escolhas que faremos, e só poderemos fazer estas escolhas baseados em nossas próprias experiências pessoais. Deu para entender alguma coisa??? Se não, podem perguntar...
Ah, e antes que eu me esqueça: a bat-gata veio deste site.
Até,
Brena.
Referências:
NAGEL, E. La Estrutura de la Ciencia. Buenos Aires: Paidos, 1961.
POPPER, K. O realismo e o objectivo da ciência. Lisboa: D. Quixote, 1997.