sábado, 22 de outubro de 2011

Experiência Estética



Caríssimos Alunos,

estou neste exato momento em Sampa, e eu a-do-ro Sampa!!! Esta cidade é simplesmente demais. Ela tem um não sei quê que me encanta, me encanta e me encanta. Deve ser essa confusão de tantas gentes diferentes junto com essas tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, misturadas com todo esse asfalto e concreto armado. E é por isso que, se o Caetano é o baiano mais paulistano que há na face da Terra, então agorinha mesmo estou me outorgando o título de a carioca de coração mais paulistano que essa Avenida Paulista já teve notícia. E não se discute mais isso, ok?

Como hoje é sábado, vamos falar sobre um negócio diferente do usual. Muito diferente mesmo, chegando a beirar o sobrenatural. Falaremos sobre as experiências estéticas. Acabo de voltar do MASP, aquele "palácio de ferro, vidro e concreto, quase solto no ar", segundo li em algum lugar. E é a mais pura verdade: aquele prédio, por si só, já é uma experiência estética, arquitetônica, engenharial e sobrenatural. Se não lembram dele, deem uma olhadinha logo aqui abaixo e me digam se é ou não é uma coisa linda-de-morrer...




E tudo isso sem mencionar o que tem dentro dele... O resultado foi que voltei de lá muito a fim de falar sobre estes assuntos. Mas vamos por partes, porque o Tico e o Teco estão tão em polvorosa com todas as coisas que andaram vendo e pensando, que se a gente não organizar esse negócio aqui bem direitinho, vocês vão acabar é não entendendo coisa alguma...

O título da postagem é "experiência estética". A estética, como vocês sabem, é uma das áreas de estudo da filosofia. Mas só para recordar, a filosofia divide-se em quatro grandes domínios, que são:

1. a metafísica,
2. a teoria do conhecimento,
3. a ética e
4. a estética

Cada um deles ocupa-se com algumas questões fundamentais, a saber:

1. a metafísica procura responder à questão: "quem somos nós?", bem como várias outras questões correlacionadas, como: "de onde viemos?", "para onde vamos?", "existe uma alma humana imortal?", "existe Deus?", and so on... Para estas perguntas não há respostas que possam ser testadas empiricamente. Na prática, isto significa que nunca saberemos se a alma humana é imortal ou não. Pelo menos enquanto estivermos vivos. Foi por este motivo que os Positivistas Lógicos fizeram questão de deixar bastante claro que a metafísica não poderia fazer parte do escopo da investigação científica.
2. a teoria do conhecimento, ou epistemologia, por sua vez, busca respostas para as questões: "o que é possível conhecer?", "o que é a realidade em si mesma?", "o cérebro humano pode reivindicar um acesso privilegiado a ela?". Desde o advento da revolução científica, como vimos, este tipo de perguntas foi canalizado para a investigação do estatuto do conhecimento científico, especificamente,e é justamente isto que estudamos na nossa disciplinazinha de metodologia. Não é assim?
3. a ética investiga a questão "o que é justo?" ou, dito de outro modo: "como devemos proceder?", "o que é certo e o que é errado de se fazer?" Como estas questões estão relacionadas a aspectos pragmáticos da vida humana, seja individualmente, seja em sociedade, em alguns lugares este tipo de investigação recebe a denominação de "filosofia prática" (como na Alemanha, por exemplo: praktishe Philosophie). Como o agir humano em sociedade em geral envolve desdobramentos políticos, em outros lugares este ramo de investigação também é chamado de "filosofia política", como é o caso do Brasil. E foi na filosofia política que se originou muito do conhecimento que mais tarde viria a formar a área científica denominada ciência política.
4. Por fim, a estética preocupa-se com a investigação sobre"o que é o belo?", "o que é a arte?", "qual o sentido das obras de arte para a humanidade?" e, não menos importante, "o que é uma experiência estética?".

E é sobre isso que trataremos a partir de agora. Esta pequena introdução foi só para que vocês localizassem, no mapa do conhecimento que existe dentro da cabeça de cada um, em qual cidade nós estamos adentrando nesse momento, ok?

Pois muito bem: a imagem que ilustra a postagem de hoje é a de um quadro que faz parte do acervo permanente do MASP. Trata-se de "Criança Morta", do Cândido Portinari. De acordo com o que aprendi com a minha amiga Sandrinha, que além de amiga ainda acumula a função de minha personal professora de história da arte (vamos combinar que ter isso é chic demais, hein?), o estilo do quadro é o expressionismo. E o expressionismo, para aqueles que ainda não estudaram o método dialético, é a antítese do impressionismo (do Monet, Manet, Renoir e Degas).

Aconteceu uma coisa muito intrigante quando estive em São Paulo pela primeira vez, e já lá se vão uns bons anos. Logo que pude, saí correndo para o museu. Chegando lá, parei na frente desse quadro e fiquei entre impressionada e encafifada. Para além do fato da imagem ser muito impactante mesmo, fui invadida por uma sensação de familiaridade, cuja origem não conseguia identificar. E fiquei com aquilo martelando na cabeça um tempão: se nunca havia estado ali antes, de onde eu conhecia aquela imagem? De onde?

Depois de muito matutar, cheguei às seguintes conclusões:

i) Já tinha ouvido aquele quadro numa música chamada Kianda, "a água de beber é pouca, o delírio do cansaço é muito, a lágrima que cai é tanta, que pode até me afogar..." 

ii) E também já havia lido aquela imagem num trecho do lindo e tristíssimo poema do João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina"E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida)" .

"Ah bom!", disse eu de mim para comigo. Então estava explicado porque o quadro me parecera tão familiar, apesar de eu nunca tê-lo visto antes. Mas aquela ainda não tinha sido uma explicação boa o suficiente. Por isso, ao voltar para o hotel fui investigar mais e descobri que o Cândido Portinari era amigo muito chegado adivinhem de quem! Do Graciliano Ramos, e que ele (Portinari) havia pintado uma série de quadros, entre 1944/45, denominada "Retirantes", em homenagem à obra Vidas Secas. E "Criança Morta" faz parte dessa série e dessa homenagem. "Ah bom!", pensei novamente com os meus batons. Então agora sim: aquele quadro e eu já nos conhecíamos há séculos. Éramos praticamente amigos de infância. Já com tudo bem explicadinho dentro da minha cabeça, a coisa toda fez sentido e finalmente consegui dormir em paz.

Mas a parte sobrenatural vem agora. Prestem bastante atenção, porque eu só vou contar essa história uma única vez. A partir deste momento passo a relatar uma conversa que tive com outra amiga, cujo nome entretanto não revelarei nem sob tortura, pois ela não me autorizou a divulgá-lo publicamente. Falávamos sobre o quadro, e sobre minhas investigações e descobertas acerca dele, do jeitinho que acabei de contar para vocês. Pois ela também tinha uma história relacionada com aquele quadro. Disse-me que, na primeira vez que estivera no MASP, também havia ficado muito impressionada com ele. Era tão brutal o rio de lágrimas jorrando dos olhos daquelas pessoas, que ela teria ficado parada durante muito tempo na frente dele, completamente hipnotizada, sem conseguir desgrudar do chão. Foi quando tudo aconteceu. Passo a reproduzir o que me foi contado da maneira mais fidedigna que consigo. Vou até usar aspas.

Ela me disse: "De repente aconteceu uma coisa estranhíssima. Comecei a me sentir mal: uma moleza nas pernas, um aperto no peito, um nó na garganta... E a boca seca, tão seca. Do nada, passei a sentir uma dificuldade para respirar e um desespero enorme. Aquelas pessoas faméricas não eram mais figuras num quadro, eram a minha família! E aquela dor imensa, indizível, e aquela desesperança e aquele abandono que eles sentiam não eram mais apenas deles, mas também a minha dor, a minha desesperança e o meu abandono. E o mais apavorante: aquele menino morto nos braços do pai, não era filho daquela mãe, mas meu filho! Quando percebi o que estava prestes a acontecer, quando entendi tudo, precisei sair correndo para o banheiro, porque senão eu iria cair em prantos e chorar exatamente o mesmo rio de lágrimas bem ali mesmo, no meio do museu e na frente de todo mundo".

Quando ela acabou de me contar essa história, pensei na hora: "Ô loco, meu! Que onda, hein..." Mas o pior de tudo não contei ainda: é que essa minha amiga é a maior super-caretona da paróquia. Por isso, sou capaz de jurar que ela nem estava sob o efeito de psicotrópicos quando teve essa alucinação...

Bom, então já sabem: se algum dia vocês forem arrebatados por uma obra de arte, ou seja, se sentirem que estão "dentro de um quadro" e não apenas "apreciando um quadro" e começarem a apresentar os mesmos sintomas esquisitos na garganta, no peito e nas pernas que acabei de descrever, não entrem em pânico. Está tudo bem! Respirem fundo e mantenham a calma. É provável que se trate apenas de uma experiência estética. Falou?

Então tá.

Até mais,
Brena.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

A Criança, o Pônei e o Cão


Queridos Alunos,

continuo corrigindo provas. Este e outro acontecimento departamental recente me fizeram pensar muito em vocês, em mim, em nós, no passado e no futuro. No nosso e no da Universidade. Sigo, como vocês podem perceber, contemplativa e ensimesmada (ou seria emimesmada?). Será isso o que eles chamam de midlife crisis?

De todo modo, ontem, ao pensar nisso tudo, me lembrei demais de um episódio ancestral. (NOTA de 13/10/2011: Estava tão atarantada quando postei isso, que esqueci de dizer que se tratava de uma homenagem ao dia das crianças, claro! Um viva a todas as criancinhas humanas sábias que existem no planeta! E vou até melhorar o título, para que tudo fique muito mais claro...)

Esta doce criaturinha mordendo o beiço inferior e montada num pônei, que ilustra a postagem de hoje, é a Micaela, em todo o esplendor de seus dois aninhos e meio de vida. Um belo dia, ela resolveu uma vez mais testar minha autoridade materna. Estávamos num hotel fazenda e eu tinha um desejo singelo: queria uma foto dela montada no pônei. Só isso. Do pônei fez-se porém um cavalo-de-batalha, e o que se seguiu foi um diálogo de mais ou menos meia hora, que pode ser condensado nos seguintes argumentos, contra-argumentos e novos argumentos (teses, antíteses e sínteses), tudo no melhor estilo dialético:


Eu: "Você vai andar no pônei!"
Ela: "Não vou!"
Eu: "Sobe!"
Ela: "Não subo!"
Eu: "Monta!"
Ela: "Não monto!"
Eu: "Por favor, filhinha..."
Ela: "Não!"
Eu: "Eu estou te pedindo..."
Ela: "Já disse que não!"
Eu: "Então você vai ficar de castigo!"
Ela: "Não vou!"

E o ciclo inteirinho se reiniciava...

Depois de muito pelejar, e quando já estava prestes a ser vencida pelo cansaço, deu-se um daqueles momentos mágicos, em que o próprio tempo parece querer parar, com o único propósito de não perder nenhum mínimo detalhe da cena. Foi por isso que o que veio em seguida aconteceu em slowmotion. Apareceu um cão, do nada. Era um pastor alemão enorme: um bicho bonito, lustroso, bem cuidado mesmo. Com certeza fazia parte da bicharada do hotel e era manso, mas ele era realmente enooooorme... Passou devagarinho (em câmera lenta, lembram?), bem rente a nós quatro: o pônei, o cuidador, ela e eu. Ela, petrificada, em pé, ao pé do pônei, não movia um músculo. Apenas os olhinhos acompanhavam a direção que o cachorro ia tomando. Quando ele finalmente desapareceu numa curva, e só então, o tempo se recuperou, voltando à sua marcha habitual. Foi aí que ela virou-se para mim, muito resoluta, e disse: "Tudo bem, tudo bem: eu subo! Mas no CACHORRO eu não ando não!!!!!!!"

A moral da história? Lá vai: mesmo criancinhas na mais tenra idade já sabem (ou intuem) que tudo, absolutamente tudo na vida, por pior que pareça ser, sempre pode piorar...

Se a tragédia realmente se confirmar, voltaremos a falar neste assunto, ok?

Abs,
Brena.