"ninguém nasce mulher: torna-se mulher." Com essa frase bombástica (que vocês com certeza já escutaram ou leram em algum lugar) tem início o segundo tomo - A Experiência Vivida - de um dos livros mais fantásticos, escrito por uma das mulheres mais incríveis que já existiram no terceiro planetinha que orbita o sol. Trata-se de O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. Ele foi publicado pela primeira vez em 1949, e é tido como um dos marcos do nascimento do movimento feminista, muito embora ela própria não gostasse que a vinculassem a esse rótulo.
Estou entendendo que esse é um livro sobre as mulheres, mas não exclusivamente para as mulheres. E me pareceu que isso fazia sentido. Vejam bem: no mundo, a divisão entre os gêneros gira em torno dos 50/50. Então, se alguma coisa vai mal com um dos 50%, como é que os outros 50 poderiam continuar a viver bem, como se nada estivesse acontecendo??? Pois é: também achei que nada funcionaria direito se fosse dessa maneira... Estou com isso querendo dizer que esse é um livro que deveria interessar a todos nós, humanos, independente do gênero, mas que deve interessar particularmente a nós, mulheres, porque é sobre nós. Entenderam?
Vamos tentar de outro jeito: já havia lido vários trechos desse livro há muitos anos, mas nunca o li de forma sistemática, como resolvi fazer agora. E vou ser bem sincera com vocês: o resultado está sendo assustador. Estou passada, pasma, estática, absolutamente chocada! E isso porque, em diversos momentos, fiquei com a impressão de estar lendo a minha autobiografia. E quando não, a de que estava lendo a biografia da minha mãe, ou a das minhas amigas, ou a das amigas da minha mãe, e por aí vai... Isso é assustador porque, como eu disse, o livro foi publicado em meados do século passado! Em 1949 meus pais eram criancinhas que nem bem sabiam que existiam. Estou tentando dizer que a reflexão filosófica que o livro suscita, em que pesem as origens históricas, mitológicas, religiosas, etc. da questão da opressão feminina, está focada nos padrões de comportamento da geração que já era adulta naquela altura. Ou seja, na geração da própria Simone, que foi a geração dos meus avós! Apesar das mudanças profundas que a situação das mulheres experimentou de lá para cá (por conta da conquista do direito ao voto, da entrada massiva no mercado de trabalho, do advento da pírula anticoncepcional, do divórcio, etc.), se algumas coisas ainda permanecem exatamente iguais ao que eram outrora, significa que esse negócio de aprender a ser o segundo sexo é casca grossíssima. E que continua a atravessar gerações e gerações!!!
Um dos temas recorrentes, que perpassa várias discussões do livro, é a interpretação do modo como dois conceitos metafísicos, contrários e complementares, - a imanência e a transcendência - impactam diferentemente na vida de homens e mulheres.
Um dos temas recorrentes, que perpassa várias discussões do livro, é a interpretação do modo como dois conceitos metafísicos, contrários e complementares, - a imanência e a transcendência - impactam diferentemente na vida de homens e mulheres.
Imanência (o que existe no interior): o que permanece, que fica, que mantém, que estabiliza, que se repete, indefinidamente, "Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã, me sorri um sorriso pontual e me beija com a boca de hortelã..." , essas coisas...
Transcendência (o que está para além dos limites): o que muda, que vai, que avança, que conquista, que se aventura, sempre "Era um menino com o destino do mundo nas mãos. Olhos no dilúvio e os dedos no violão... E eu irei em qualquer direção. Eu sou meu guia, eu sou meu guia...", essas outras coisas...
Todos os seres humanos traríamos em nós desejos de imanência e transcendência. Não obstante, apenas à metade da humanidade teria sido dada a possibilidade de exercer livremente esses dois impulsos, e essa foi a metade masculina. Aos 50% restantes, o segundo sexo, feminino, teria sido ensinado que sua verdadeira vocação, ou sua "verdadeira natureza" seria a imanência. E assim foi feito.
Isso explica, por exemplo, as diferentes expectativas que homens e mulheres nutrimos com relação aos relacionamentos amorosos, mais especificamente com relação ao casamento. Um trechinho para vocês entenderem melhor esse papo todo:
p. 209, Tomo II:
O homem, hoje, casa para ancorar na imanência, mas não para nela se encerrar; quer um lar, mas conservando a liberdade de se evadir dele; fixa-se, mas o mais das vezes continua vagabundo no fundo do coração; não despreza a felicidade, mas não faz dela um fim em si; a repetição aborrece-o; procura a novidade, o risco, resistências que lhe caiba vencer, camaradagens, amizades que o arranquem da solidão a dois. Os filhos, mais ainda que o marido, almejam ultrapassar os limites do lar: a sua vida situa-se alhures, à sua frente; a criança deseja sempre o que é outro. A mulher tenta construir um universo de permanência e continuidade: marido e filhos querem ultrapassar a situação que ela cria e que não passa para eles de um dado. Eis por que lhe repugna admitir a precariedade das atividades a que toda a vida obriga, é ela levada a impor seus serviços pela força: de mãe e dona de casa ela faz-se madrasta e megera.
O livro inteirinho encontra-se bem aqui. Sugiro que leiam. E se apenas com a leitura não der para mudar radicalmente - i.e. da água para o vinho, da noite para o dia - o comportamento ensinado e tornado padrão pela força da repetição, década após década, geração após geração, então, na pior das hipóteses, pelo menos a gente fica sabendo o que está acontecendo. No caso das mulheres da minha geração, estamos repetindo as expectativas e os comportamentos das nossas avós. No caso das mulheres da geração de vocês, estão repetindo aqueles das bisavós...
Coisa de louco, hein?
Coisa de louco, hein?
Até mais,
Brena.
P. S. E foi inspirada na linda imagem das 4Simones, e em sua homenagem, que eu fiz a das 4Brenas, que será a minha cara doravante.