domingo, 29 de julho de 2012

O Bruxo e a Cartomante


Queridos Alunos,

aproveitando que até segunda ordem estamos de férias e ainda não precisamos ser originais, sérios e compenetrados, é hoje que eu me jogo com roupa e tudo no poço dos lugares-comuns. Fazendo par com a postagem anterior, nesta confessarei que o autor que está empatado com Gabriel Garcia Márquez no primeiríssimo lugar do pódio do meu coração é o Machado de Assis. Não disse? Cliché, cliché, cliché. Mas o que fazer? Às vezes eles são inevitáveis...

Hoje falaremos sobre A Cartomante, originalmente publicada em 1884, e um verdadeiro primor do gênero Brazilian short stories.

O resumo da ópera é o seguinte (por favor, antes leiam o conto inteiro no link acima): Vilela e Camilo são amigos de infância e não se veem há muitos anos. Reencontram-se. Vilela apresenta a Camilo sua esposa, Rita. Camilo e Rita tornam-se amantes. Camilo recebe uma carta anônima ameaçadora. Com um misto de medo e remorso, Camilo passa a rarear as visitas à casa do casal, até que estas cessam por completo. O romance continua. Não obstante Rita sente-se insegura com o acontecido e consulta uma cartomante para saber se Camilo ainda a ama. A cartomante diz que sim. Cético, Camilo a reprova por isso. Novas cartas anônimas aparecem e coincidentemente Vilela torna-se taciturno. Temendo que ele estivesse desconfiando de algo, Camilo e Rita deliberam e decidem suspender os encontros por um tempo. No dia seguinte, Camilo recebe um bilhete de Vilela, muito seco, pedindo que ele fosse imediatamente à sua casa. Camilo estranha e desconfia do pior. Angustiado, decide ir ao encontro. No caminho, uma circustância fortuita (será?) faz com que ele consulte a mesma cartomante para saber o desfecho do encontro. Ela o tranquiliza completamente e, otimista, ele chega à residência do casal. Lá encontra Rita morta, estendida no canapé da sala. Foi sua última visão antes de ser ele próprio morto, alvejado por dois tiros de Vilela.

O que quererá isso tudo dizer? Será possível conhecer o futuro? E uma vez conhecido, será possível mudá-lo? Existe livre arbítrio ou tudo é destino, pré-determinado? Em última instância, existem possibilidades em aberto, ou só há o necessário e inexorável? É por essas e outras que eu digo que o Machado de Assis era um craque em lógica clássica, modal, paraconsistente, e por aí vai...

Examinaremos três possibilidades:

(i) Não é possível conhecer o futuro, logo não é possível mudá-lo,
(ii) É possível conhecer o futuro e mudá-lo e
(iii) É possível conhecer o futuro, mas não é possível mudá-lo.

(i) À primeira vista, o conto é uma grandessíssima gozação (ok, ok, é uma tragicomédia) do autor com os supostos poderes adivinhatórios da cartomante. Afinal de contas, ela, que é a figura em torno da qual os acontecimentos mais importantes se desenrolam, errara a previsão. Mas o Bruxo do Cosme Velho não era óbvio assim... Notem que o conto começa com uma alusão a Hamlet e à sua célebre frase acerca dos mistérios insondáveis do universo. Esta e várias outras pistas aparecem no conto sinalizando a verdadeira tese que ele pretendia defender: "há mais cousas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia", ou algo assim. Então deixemos de lado esta alternativa comezinha e partamos logo para as outras, mais interessantes...

(ii) A fim de responder se a cartomante podia ou não ler o futuro, será preciso conhecer um pouco mais desse personagem, que tinha "dedos finos, de unhas descuradas". Mas que em seguida é descrita como possuindo "duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas". O que deve essa caracterização, aparentemente contraditória, significar? Que tudo não passa das "eternas contradições humanas"? Que a cartomante era uma pessoa humana e, enquanto tal, dona de vícios e virtudes, dramas e glórias? Era por isso que os dentes limpos desmentiam as unhas sujas? Se fosse assim, ela podia ou não saber o futuro? Em princípio sim, e já havia feito uma previsão acertada, quando da primeira visita de Rita. Naquela ocasião, a cartomante, quando perguntada se Camilo amava Rita deveras, dissera-lhe que sim. E com isso conseguira mudar o futuro, pois Rita saíra de lá aliviada.


(iii) Se é possível saber o futuro e mudá-lo, então por que a cartomante praticamente empurrou Camilo para a morte, dizendo (cinicamente?) "Vá, raggazzo innamorato..."? Algumas vezes seria possível apenas conhecê-lo, mas não mudá-lo? Minha hipótese é a de que, como a cartomante estava ali a serviço e não a passeio, percebeu rapidamente que, caso contasse a verdade, corria o sério risco de ficar sem o seu pagamento. Por isso resolveu calar.

Com isso chegamos finalmente à quarta, última e definitiva possiblidade, até agora ainda não aventada:

(iv) É possível conhecer o futuro, porém só é possível mudá-lo se a cartomante resolver falar a verdade - hehehe.

A imagem veio daqui. Tudo indica que são eles: Vilela, Camilo e Rita, à mesa. Momento tenso...

Até mais,
Brena.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Conversa com Dom Gabito


Queridos Alunos,

outro dia li uma notícia tristíssima (aqui). Ela dá conta que meu adorado escritor Gabriel García Márquez teria perdido a memória de uma vez por todas. E esta seria a razão pela qual ele não publica nada há tanto tempo. Mais ou menos uns três anos depois da publicação de seu último romance, Memória de minhas putas tristes (2004), como explicação para a ausência de novos livros, li uma versão diferente: que ele teria sonhado que morreria depois de finalizado o romance seguinte. Como era uma pessoa supersticiosa, estaria procrastinando como uma estratégia para ludibriar a morte...

De todo modo, saber que nunca mais lerei nada de novo escrito pelo Dom me deixou com um aperto enorme no peito. Isto porque neste mes de julho completam exatas três décadas que ele começou a falar comigo. Como tenho milhares de notas mentais das coisas que ele me contou ao longo de todo esse tempo, resolvi brincar que falei com ele também. Mais ou menos como uma estratégia para driblar não a morte, mas o seu esquecimento, esse diálogo imaginário seria assim:

B.P.: Meu querido Dom Gabito, antes de começar, e correndo todos os riscos de cair na vala comum da tietagem explícita, vou fazer aquilo que meu coração mandou: dizer o que sinto por você. Te amo, te adoro, te venero, te idolatro. Você marcou minha existência para todo o sempre. Livros, livros e mais livros, lidos, relidos, trilidos, tetra, penta, hexa, e por aí vai... pela vida afora. Tá bom assim ou quer mais?  Então agora vamos ao que mais interessa. Você, que é tão bom com as palavras, se tivesse apenas uma frase para usar, como se definiria?

G.G.M.: Sou um homem simples. (Doze contos peregrinos).


B.P.: Hehehe. E se tivesse duas, três, quatro?

G.G.M.: Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior. Que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me impora o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma, e, sim, um signo do zodíaco. (Memória de minhas putas tristes).

B.P.: Quando li O Amor nos Tempos do Cólera pela primeira vez, recém saída dos cueiros (ou quase isso, vai...), achei que Florentino Ariza fosse você. Muitos anos mais tarde, em Viver para Contar, você me revelou que ele na verdade era o teu pai. Então os romances são mesmo sempre autobiográficos?

G.G.M.: Sim. (vários romances e contos).


B.P.: Huuuummmm. Bem que eu desconfiava. Ainda seguindo essa linha das vidas reais que se misturam e se confundem com as vidas dos personagens dos romances, dizem as más línguas que Macondo, a cidade fantástica dos Buendía, é Aracataca, tua cidade natal. Como era a Aracataca da tua infância?

G.G.M.: Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. (Cem anos de solidão).

B.P.: Quando você começou a perceber que envelhecia?

G.G.M.: Aos quarenta e dois anos havia acudido ao médico por causa de uma dor nas costas que me estorvava para respirar. Ele não deu importância: É uma dor natural na sua idade, falou.
-- Então -- disse eu --,  o que não é natural é a minha idade.
O médico me deu um sorriso de lástima. Vejo que o senhor é um filósofo, disse ele. Foi a primeira vez que pensei na minha idade em termos de velhice, mas não tardei a esquecer o assunto. E me acostumei a despertar cada dia com uma dor diferente que ia mudando de lugar e de forma, à medida que passavam os anos. Às vezes parecia ser uma garrotada da morte e no dia seguinte se esfumava. Nessa época ouvi dizer que o primeiro sintoma da velhice é quando a gente começa a se parecer com o próprio pai. Devo estar condenado à juventude eterna, pensei então, porque meu perfil equino não se parecerá jamais ao caribenho cru que era meu pai, nem ao romano imperial de minha mãe. A verdade é que as primeiras mudanças são tão lentas que mal se notam, e a gente continua se vendo por dentro como sempre foi, mas de fora os outros reparam. (Memória de minhas putas tristes).

B.P.: É mesmo. Engraçado o que você diz, sobre ficarmos parecidos com os nossos pais. Eu acho que isso vai além da aparência física. Por exemplo: ano passado comprei minha primeira blusa com estampa de oncinha. Aí me lembrei de quando era criança e achava cafonérrimo minha mãe usando roupas de onça. Foi exatamente ali, saindo da loja, com a sacolinha da blusa na mão, que percebi que envelhecera. E isso porque naquele instante me veio a lembrança dessa tua comparação do envelhecimento com a semelhança com os nossos pais. Falando de lembranças, o que é mais importante para você: viver ou lembrar?

G.G.M.: A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda, para contá-la. (Viver para contar).

B.P.: E o que você descobriu sobre o amor, depois desses anos todos de vida?

G.G.M.: Tomei consciência de que a força invencível que impulsionou o mundo não são os amores felizes mas os contrariados. (Memória de minhas putas tristes).

B.P.: É, eu lembro: foi bem assim, com amores contrariados, que você começou O Amor nos Tempos do Cólera: "Era inevitável: o cheiro de amêndoas amargas sempre lhe lembrava o destino dos amores contrariados...." Mas como conseguir sobreviver a eles?

G.G.M.: Os seres humanos não nascem para sempre no dia em as mães os dão a luz, e sim que a vida os obriga outra vez e muitas vezes a parirem a si mesmos. (O Amor nos tempos do cólera).

B.P.: Profético isso... E agora, para encerrar, você pode matar uma curiosidade minha?  Por que você escreve?

G.G.M.: Escrevo para que meus amigos gostem mais de mim... (Isso está na malfadada reportagem publicada na Carta Maior). [Ele é ou não é uma criatura doce e encantadora?]

B.P.: Então tá, Dom Gabito. Pode ter certeza que deu muito certo...
E já que você é um homem simples, una Canción de las simples cosas para ti.

Uno se despide insensiblemente de pequeñas cosas, lo mismo que un árbol que en tiempo de otoño se queda sin hojas. Al fin la tristeza es la muerte lenta de las simples cosas, esas cosas simples que quedan doliendo en el corazón.

Uno vuelve siempre a los viejos sitios donde amó la vida, y entonces comprende como están de ausentes las cosas queridas. Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso, que el amor es simple, y a las cosas simples las devora el tiempo.

Demórate aquí, en la luz mayor de este mediodía, donde encontrarás con el pan al sol la mesa tendida. Por eso muchacho no partas ahora soñando el regreso, que el amor es simple, y a las cosas simples las devora el tiempo.

FIM