quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Simão Bacamarte em Moscow. Final. Ou então: a Verdade, a Verdade, a Verdade



Queridos Alunos,

para quem não se lembra mais, já que tanto tempo passou desde então, isso que segue é a continuação de Simão Bacamarte em Moscow: a parte não contada da história e tem por objetivo justamente revelar a parte faltante. Ou seja, tornar público, com mais de um século de atraso, o que, afinal de contas, Simão foi fazer na Enfermaria nº 6. Como isso aqui não é literatura nem nada, prometo que contarei tão somente a verdade, a verdade, e nada além da verdade.

Estou segura de que todos hão de ter ouvido falar da desgraça que se abateu sobre a pacata Itaguaí, do Dr. Simão Bacamarte, o eminente médico alienista que mandou prender e desprender todas as gentes da cidade e das cercanias. Quando tudo isso começou a acontecer, andava o ano da graça de 1863.

Decerto saberão também que sua fama não era infundada. Dr. Bacamarte foi o maior, o mais prodigioso, o mais brilhante dos médicos de então, e por conta disso seu nome corria mundos (o velho e o novo). Assim narram as crônicas. O que nem todo mundo sabe diz respeito aos acontecimentos que precederam a sua vinda para o Brasil e o episódio da Casa Verde.

Ainda estudante em Coimbra, certa vez  tomou parte num Congresso de Medicina em Londres. Foi quando conheceu o Dr. Andrei Efimich, médico russo que trabalhava num hospital localizado nos arredores de Moscow. Deram-se muito bem desde o primeiro contato e, nos intervalos das conferências, o Dr. Efimich não tardou a contar sua experiência no hospital, alongando-se em melancólicas divagações sobre a péssima situação da saúde na cidade. Narrou o estado deplorável, a imundície do hospital, o terrível odor de "jaula de feras" que impregnava o lugar, a falta de condições mínimas de trabalho, enfim... Porém falou mais demoradamente sobre um assunto que começava a lhe despertar maior interesse: a loucura. Lamentou -- desesperançosamente, é preciso que se diga -- a falta de tratamento adequado para saná-la, a crueldade, a rudeza, os modos brutos com que eram tratados os mentecaptos, que chegavam inclusive a ficar a ferros, por dias e dias seguidos.  Ou seja, a bem da verdade, nada mais nada menos do que o tratamento-padrão dispensado aos alienados no século XIX. Mas foi um assunto em especial que chamou a atenção de Simão: a Enfermeria n° 6, onde eram mantidos reclusos os loucos. Isto porque, naquela altura, encerrar os alienados num só lugar era algo tão inusitado que parecia, por si só, uma ideia de doudo. E era exatamente isso que estava acontecendo numa ala anexa ao hospital russo! Tamanho foi o entusiasmo despertado com a notícia daquela experiência inovadora, que Simão entabulou de imediato negociações com o colega para marcar uma visita. E que fosse para breve. Assim foi feito.

Dois meses depois, foi ter Simão com o Dr. Efimich para observar in loco aquilo que, de longe, parecera-lhe tão estrondosamente revolucionário. Lá chegando, avistou os cinco internos da Enfermaria n° 6. Cinco internos. Como eram em número tão reduzido, fez-se a primeira luz:


A verdade:

"A loucura é uma ilha perdida no oceano da razão."

Eram afinal poucos os loucos! Sim!

Dos cinco, Simão prestou mais atenção no judeu chamado Moseika, a quem era permitido sair a perambular e mendigar nas ruas próximas, e em Ivan Dmitri Gromov, que sofria de mania de perseguição, e a quem o Dr. Efimich dispensava especiais cuidados. Parecia mesmo nutrir por este interno certa estima, pois visitava-o todo santo dia para conversar com ele por longos períodos! Mas o mais era simplesmente o caos. Não havia estudos, nem tratamentos específicos destinados às diversas doenças mentais que, aliás, nem haviam sido catalogadas! Faltava método naquela loucura. Faltava método, concluiu. O método científico.

Foi quando outra revelação assomou-lhe à mente:

Outra verdade:

-- "Meus Senhores, a ciência é cousa séria, e merece ser tratada com seriedade."

Afirmou Simão aos seus interlocutores, já que naquele momento estava também na presença de outros colegas russos, vindos especialmente para ouvirem suas impressões sobre as condições dos internos. "A ciência é cousa séria, seríssima!", repetiu, solene. "Lançar hipóteses, testá-las, experimentá-las, colocá-las à prova, refutá-las, para depois começar tudo novamente... Essas cousas que a humanidade toda já conhece. Vocês aqui precisam disso, caso contrário jamais lograrão êxito nos tratamentos", sentenciou.

É totalmente dispensável explicitar isso, mas foi ali, naquele preciso momento, na Enfermaria n° 6, que foi plantada a semente da Casa Verde e selado o destino de Simão Bacamarte.

Ele voltou para Coimbra, concluiu seu curso, formou-se médico, Doutor, cientista, veio trabalhar no Brasil e tudo aquilo que já é público e notório se deu. E minha missão vai se encaminhando para o final. Mas não sem antes dizer que o Dr. Bacamarte nunca perdeu contato com o Dr. Efimich, pois os dois correspondiam-se muito a miúdo, e não sem antes fazer uma derradeira revelação:

A última, a derradeira verdade:

Enquanto acompanhava, de longe, o triste ocaso do colega, certo dia disse Simão de si para consigo: "Quando finalmente descobrir a verdade sobre a loucura, vou parar. Isso de estudar sempre, sempre, não é bom, vira o juízo da gente."

O resto vocês já sabem: deu no que deu.

Sou capaz de jurar que foi exatamente assim, tintim por tintim, que tudo sucedeu.

Até mais,
Brena.

P. S.